Do património deslocalizado em São Julião do Tojal 

O património, quando deslocalizado do seu lugar de origem, retirado do seu ambiente primicial para o qual foi idealizado e executado, corre o risco de assumir uma pluralidade imensa de identidades sem as certezas que tanto gostaríamos de ter. Nele podemos reconhecer inúmeras experiências e infindáveis histórias ou deduções que em muito enriquecem os debates e o trabalho da academia. É exatamente por isso, porque a ‘coisa’ antiga pode ser renovada no seu interesse, que nunca devemos perder a capacidade de nos surpreendermos com encontros inesperados com esse mesmo património que tem certamente muito a contar.

Assim acontece com uma peça evidentemente extraída do seu contexto inicial, que se encontra localizada sobreposta e de algum modo inclusa pelo tempo, num pequeno muro no cemitério da localidade de São Julião do Tojal, concelho de Loures. Quando entramos neste espaço, do lado esquerdo, sobre o antigo muro delimitador do cemitério, vemos o que parece ser uma grande pedra branca, com traços de escultura, cuja definição só é possível obter quando nos aproximamos dela. Trata-se de uma peça artisticamente talhada em pedra calcária branca, bastante marcada pela erosão do tempo e do desgaste que a cal aplicada ao longo de anos foi queimando, com uma representação humana cujo detalhe se parece ter perdido ao longo dos anos, mas que mantém de algum modo incólume a sugestão de quem pretende representar. Foi essa perceção que me foi detendo ao longo de vários anos, até que agora se impõe dela falar, dando a conhecer ao público geral um eventual resquício do que outrora possa ter sido uma encomenda notável de escultura aparentemente barroca. 

Trata-se, por comparação com outros modelos, e de acordo com a tratadística artística cristã ocidental europeia desde a renascença, de Paulo de Tarso. Basta que nos detenhamos um pouco diante da escultura e logo vemos o movimento do panejamento discreto, e dos braços que ora detêm do lado esquerdo um livro que evocará os escritos do apóstolo, e do lado direito, embora incompleto, podemos imaginar como seguraria a espada, como símbolo da autoridade apostólica. 

Com pouco mais que 1m de altura, a escultura em questão que aqui se refere, remete-nos para um leque alargado de inspirações que pela Europa circulavam desde o século XVI, e que no período áureo do século XVIII vão marcar profundamente a cultura portuguesa, com um especial enfoque em Lisboa e nos seus arredores. Penso em Santo Antão do Tojal onde o Palácio dos Arcebispos foi reabilitado e repensado ao gosto de Tomás de Almeida, primeiro Patriarca de Lisboa, profundo admirador da cultura italiana que inspirava constantemente as cortes e as sociedades europeias. Bem sabemos das encomendas de arte para a Patriarcal em Lisboa, para o Real Edifício de Mafra, ou para a Igreja de São Roque, e de como foram fundamentais como afirmação política e religiosa num território em transformação social que parecia crescer cada vez mais aos olhos das demais praças europeias. Assim, urge compreender e estudar em detalhe esta peça aleatoriamente esquecida e que quem sabe, poderá ter pertencido a um conjunto escultórico entretanto dispersado, ou provavelmente tratar-se-á de uma peça encomendada especificamente para uma utilidade devocional e simbólica. A escala, a expressão, o movimento e o significado em si mesmo, levam-nos a questionar como pode ter ido ali parar aquela imagem paulina. Seria da Capela do Espírito Santo, fronteira à Igreja Paroquial de São Julião do Tojal, ou seria desta mesma igreja, ou antes, teria pertencido à de Santo Antão do Tojal?  

E quanto aos indicadores que só uma análise mais cuidada podem aprofundar, como o da eventual coloração, ou de como seria a imagem quando completa? 

Estas e outras questões surgem, mas a maior de todas é esta, de até quando se deixará destruir esta imagem? Proponho que possa ser estudada uma solução de reintegração em contexto museográfico, podendo ser alvo de um estudo multidisciplinar, ainda que sujeito às possibilidades que as questões económicas imponham, permitindo a sua salvaguarda e em simultâneo, a sua divulgação, uma vez que se tende a perder sem que mais dela se saiba, e se possa conhecer na situação atual. Quem sabe o que viremos a aprender com o este “São Paulo Perdido” de São Julião do Tojal!

Duarte Morgadoassociado da ADAL

(Os artigos de Opinião aqui publicados  são da responsabilidade dos seus autores e podem não reflectir as posições da ADAL).

Tocadelos: uma decisão clara?

Crédito de The Yellow Jackets

As ruínas do antigo sanatório (nunca concluído) de Tocadelos, em Lousa, foram destruídas há umas semanas.

O sanatório, destinado a dar apoio a doentes com problemas respiratórios, nomeadamente afetados com tuberculose, aproveitando os bons ares da zona, era um exemplo do empenho dos republicanos em criar condições de tratamento para os que necessitavam. Era um património (não concluído, é verdade, nunca utilizado, igualmente verdade…) passível de situar o papel que o movimento republicano teve em Loures, de valorização do espaço natural de Lousa, da história da saúde no concelho e em Portugal, etc. Múltiplas vertentes a justificar a preservação daquelas ruínas, quase que um ex-libris da zona, e a equacionar inclusive um outro aproveitamento daquele espaço e daquela construção.

Durante anos e anos vimos publicações autárquicas, da Câmara e da Junta, a valorizar as ruínas de Tocadelos. Infelizmente, perante a pressão de interesses ligados à construção de armazéns para a atividade comercial, e cujos contornos (incluindo a derrocada das ruínas) não são muito claros, não houve capacidade para fazer frente e oferecer uma solução que, inclusive, permitisse conciliar as diversas vertentes, neste caso uma vertente de cultura e património e uma vertente de atividade económica.

É verdade que existiu um debate público do projeto. Porém, importa equacionar que a defesa do património, nos tempos que correm e na zona em causa, carente de oferta de emprego, acaba sempre por ser relegada ou mesmo esquecida por completo. Até porque, infelizmente, durante anos e anos as ruínas ali estiveram, sem qualquer esforço de valorização, sem um insistente trabalho de educação do que significavam de fato. Por isso, o argumento do debate público é escasso.

As autarquias não podem ter um papel passivo. Têm de assumir os custos das decisões mais difíceis. Lamentavelmente tal não aconteceu e as ruínas de Tocadelos desapareceram do mapa físico de Loures. O passo seguinte é morrerem na nossa memória. Assim se mata a história do concelho.

Nota: Abertura da newsletter „Loures História Local“ nº 48 de dezembro de 2024

Carlos Cardoso, responsável pela newsletter História Local -Loures

(Os artigos de Opinião aqui publicados  são da responsabilidade dos seus autores e podem não reflectir as posições da ADAL).

Crédito de The Yellow Jackets

Análise ao PNEC 2030 (Revisto) por Demétrio Alves

Analisa-se o Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC 2030 Revisto), documento que esteve em consulta pública entre 2024-07-22 e 2024-09-05 (https://participa.pt/pt/consulta/planonacional-energia-e-clima-2030-pnec-2030.

O PNEC 2030 (Revisto), na versão tornada pública em Julho de 2024, resulta de um processo iniciado em 2022/2023, que levou o governo português, em função das regras de governação da União da Energia e Acção Climática, a enviar o projecto de revisão do PNEC 2030 à Comissão Europeia (CE), o que fez em 30 de Junho de 2023.

Se o documento enviado à CE em Julho de 2023 continha falhas e insuficiências relevantes que, aliás, mereceram um vasto conjunto de anotações críticas que conduziram a uma profunda revisão técnico-administrativa, as incoerências e problemas socioeconómicos e ambientais que resultam da estratégia delineada no PNEC 2030 (Revisto), mantêm-se em larga medida porque as principais linhas políticas estratégicas são, no fundamental, as mesmas que as priori estavam definidas.

No presente texto, para além de se fazer um registo sintético daquelas que se consideram as principais lacunas, elencam-se alguns comentários e sugestões para melhoramento deste importante exercício de planeamento energético.

Leia aqui o documento na íntegra https://adaloures.pt/wp-content/uploads/2024/11/Analise-ao-PNEC-2030-Revisto-por-Demetrio-Alves.pdf.

Paul das Caniceiras – O paraíso esquecido de Loures

Ibis pretas

As zonas húmidas desempenham um papel ecológico fundamental e apresentam uma considerável diversidade, podendo incluir uma grande variedade de ecossistemas como pântanos, charcos, rios, lagos ou pauis. Devido à sua importância ecológica, estão frequentemente protegidas por leis e tratados internacionais, como a Convenção de Ramsar, que promove a conservação e o uso sustentável desses ecossistemas cruciais para a biodiversidade e o bem-estar humano.

São ecossistemas que abrigam uma diversidade impressionante de espécies de plantas, animais e microrganismos e atuam como habitats para muitas espécies ameaçadas, tanto endémicas como migratórias, tornando-se locais vitais para a reprodução, alimentação e abrigo de uma grande variedade de vida selvagem. Em particular, muitas espécies de aves dependem das áreas húmidas para se reproduzirem e se abastecerem durante as suas migrações. Esses locais servem como “estações de serviço” essenciais para estes animais em movimento, que frequentemente percorrem distâncias inacreditáveis e necessitam absolutamente destes locais para sobreviver aos desafios das suas viagens inauditas.

Os pauis, também conhecidos como pântanos ou áreas pantanosas, são tipos específicos de zonas húmidas que têm uma importância ecológica significativa. Caraterizam-se por solos saturados ou encharcados, geralmente cobertos de vegetação aquática, como juncos, gramíneas e outras plantas adaptadas a ambientes húmidos. São compostos por diferentes micro-hábitats, como áreas abertas de água, zonas de vegetação densa e margens lamacentas, e essa diversidade oferece nichos para uma variedade de espécies, aumentando a biodiversidade geral da área em que se inserem.

O portal «Aves de Portugal» faz referência à Várzea de Loures como um local privilegiado para a observação de aves na área de Lisboa e Vale do Tejo. O portal indica a existência neste local de três pequenos pauis que “apesar do seu estado de degradação (presença de lixo e entulho, envolvimento por construções que ameaçam a sua subsistência), ainda servem de refúgio a diversas aves aquáticas, permitindo observar diversas espécies que geralmente não ocorrem a tão pequena distância da capital”.

Infelizmente, dois destes pauis, o Paul do Tojal e o Paul da Granja, acabaram entretanto por sucumbir à pressão humana, pelo que apenas subsiste teimosamente o Paul das Caniceiras, com cerca de 14 hectares, situado cerca de 2 km a leste da Urbanização do Infantado, junto à EN 115. Apesar de oferecer abrigo a uma das raras populações da «boga de boca arqueada de Lisboa», uma espécie de peixe de água doce que se encontra em risco, e de abrigar inúmeras espécies de aves, é um local pouco valorizado e desprotegido.

O paul encontra-se desafortunadamente entalado entre pequenos campos agrícolas e armazéns, serve de local de despejo para todo o tipo de lixo e é frequentado por matilhas de cães de caça em semi-liberdade que o atravessam alegremente a nado, certamente em busca de ninhos e jovens aves, presas fáceis e apetecíveis. O seu abandono e a negligência a que está votado contrastam fortemente com a vitalidade e valorização de outras zonas similares, como a Lagoa Pequena, em Setúbal, ou o Paul de Manique do Intendente, na Azambuja.

No website do Município da Azambuja é possível ler a propósito do denominado «Paul Natura» que autarquia tem vindo a apostar na promoção do espaço, o que envolveu, nomeadamente, a colocação de uma infraestrutura de observação que tem como objetivo “promover o conhecimento, a proteção e a preservação daquele ecossistema único e tão rico para o Concelho e para toda a região”.

Resta-nos esperar (e lutar para) que a crescente consciência ambiental que se tem vindo a verificar em algumas autarquias no nosso país acabe por se estender ao nosso concelho e que esta consciência, e a ação que a deve materializar, se efetive a tempo de salvar este pequeno paraíso às nossas portas, tão rico mas tão frágil. Cuidar da natureza é cuidar de nós próprios, das gerações futuras e de todas as formas de vida que partilham connosco o nosso concelho, que tanto potencial tem para se assumir como uma área de grande valor ambiental.

Algumas espécies de aves que é possível observar no local: íbis preta; garça real; garça branca pequena, garça boieira; garça vermelha; garça branca grande; garça noturna; garçote; pernilongo; pato real; colhereiro; galeirão; mergulhão pequeno; guarda rios; rouxinol dos caniços; águia de asa redonda; águia sapeira; peneireiro; guincho; corvo marinho; cegonha

Referências:

https://www.cm-azambuja.pt/informacoes/noticias/item/4134-paul-natura-um-local-a-conhecer

Camila Rodrigues, CEO & Founder Mulheres à Obra

(Os artigos de Opinião aqui publicados  são da responsabilidade dos seus autores e podem não reflectir as posições da ADAL).